Publicado por: Laboratório de Limnologia/UFRJ | julho 3, 2023

Por quais trilhas você tem caminhado?

Por Laísa Freire

A trabalho, estudo ou a lazer, com objetivos pedagógicos ou não, caminhadas em trilhas são experiências marcantes, pois há o imprevisível, o incerto, há algo a descobrir e a vivenciar… Isso mexe com a gente, ou pelo menos comigo… 

Que trilhas você já percorreu? Eram diferentes? Quais os desafios enfrentados? 

Nesta postagem vou compartilhar a experiência de um grupo de professores universitários participantes do projeto “Education for the Sustainable
Development Goals – Capacity building for educators” ao fazer uma trilha em um ambiente Andino no Equador – os páramos das áreas da Reserva Ecológica el Angel. Os páramos são ecossistemas de montanha, caracterizados por vegetação arbustiva que ocorre, em geral, a partir de altitudes de cerca de 3.000 e 4.000 metros. Nos Andes tropicais e subtropicais da América do Sul, o gênero Polylepis (Rosaceae) é endêmico dos Andes. Na área visitada há a formação de bosques de Polylepis com importância ecológica e social. A partir da minha experiência na trilha pude criar uma narrativa inspirada pelos princípios da autoetnografia  que pode ser reconhecida como metodologia científica e crítica, capaz de desvendar, em sua maneira autorreflexiva, novos e profícuos caminhos para a pesquisa sociológica na área ambiental. Temos realizado no grupo de pesquisa algumas experiências como essa em trilhas Amazônicas e na ocasião do desenvolvimento do projeto de Universidades Sustentáveis experimentei realizar nas trilhas do Equador. Os fundamentos que embasam teoricamente a abordagem pedagógica e o olhar narrativo sobre a experiência se vinculam aos direitos da natureza. 

Ética biocêntrica e os direitos da natureza

A ética biocêntrica e os direitos da natureza têm sido abordagens promissoras para combater a visão centrada apenas no ser humano no mundo moderno. Isso acontece porque essas perspectivas enfatizam a conexão entre o ser humano e o meio ambiente e criticam a ideia de que o ser humano domina e está à parte da natureza. Podemos afirmar que o sistema capitalista atual trata a natureza como uma fonte de lucro e não dá valor às relações históricas entre povos colonizados e a natureza que mantiveram outros modos de ser natureza. Alguns países, como Equador, Bolívia e Nova Zelândia, já reconhecem os direitos da natureza em suas leis e constituições, mas ainda precisam lutar contra a mercantilização da natureza em seus modelos de desenvolvimento. 

Isso quer dizer que o além do componente legislativo, que é fruto de muitas lutas políticas, há um componente educativo importantíssimo para a valorização dos direitos da natureza. Promover esse componente educativo implica em mudanças nos sistemas de ensino, nas organizações curriculares e principalmente nas práticas pedagógicas.

Para construir um mundo mais sustentável, precisamos de políticas públicas e práticas educativas que se complementem. A educação ambiental pode assumir um papel educativo na promoção de relações menos predatórias na natureza e aumentar o senso de pertencimento a ela, mas ainda há lacunas em nossa compreensão desses elementos e como eles podem ser abordados educativamente. Tenho buscado nas experiências acadêmicas me aprofundar sobre o tema de modo a entender como podemos usar o sentimento de pertencimento à natureza para criar uma vida mais sustentável. Sustentável mesmo, em um sentido holístico, construído coletivamente que aporta transformações nas formas de organização das nossas vidas, que questiona o modo capitalista de produção da vida e que vai além do pragmático e da gestão eficiente de recursos. 

É importante entender que nesse contexto, a educação ambiental em ambientes naturais desempenha um papel fundamental na análise da vivência estética e da afetividade (Tavares; Brandão & Schmidt, 2009; Payne et al., 2018) que potencializa o reconhecimento dos direitos da natureza como alternativa ao capitalismo. A educação ambiental, por meio do potencial de gerar afecções pode contribuir para o processo de valorização do sentimento de pertencimento do ser humano à natureza. Assim, experiências ao ar livre com contato direto com a natureza, atividades de recreação, ecoturismo e práticas de educação, podem proporcionar vivências significativas e emocionais que estimulam a conexão afetiva e a valorização intrínseca da natureza (Rodrigues, 2019).

Experiências ao ar livre na conexão afetiva com a natureza: Caminhada nos páramos no Equador 

O trecho a seguir é uma narrativa elaborada após a caminhada na trilha:

Éramos sete pessoas e o guia. Fizemos uma caminhada de cerca de 1.400 km que durou por volta de 3 horas. Para além do tempo cronos, o tempo kairos se fez presente naquele espaço andino pouco familiar para alguns de nós. 

Fizemos uma caminhada lenta não exatamente por buscar cada detalhe do percurso, mas por dividir a atenção com os registros fotográficos e pela a dificuldade de caminhar em um solo lodoso, respirando a 3.400-3.800 metros de altitude. Conteúdos de procedimento sobre o que fazer para não ficar preso no lodo foram passados pelo guia. A trilha parecia não ter fim, não só por ser circular, mas pela intensidade das experiências vividas. Na parte baixa: o lodo, na subida: a trilha estreita e íngreme. Ao longo do percurso recebemos vários estímulos para viver sensorialmente a experiência.  Pedimos permissão à Pachamama para entrar na trilha; fizemos um desejo tocando as águas da lagoa dos desejos; abraçamos a montanha durante o movimento de um balanço gigante instalado no topo; experimentamos plantas indicadas pelo guia; sentimos cheiros e texturas; vimos cores variadas. No bosque de Polylepis havia uma trilha sonora que brotava de um habitat “selvagem” de altitude gerando sua própria assinatura, com uma quantidade de informações que comunica a vida e a dinâmica da Pachamama. A “orquestra” era formada com os sons do vento, das águas, dos insetos, dos répteis, das aves e de mamíferos (nós mesmo conversando e fazendo sons com as botas no solo lamacento).

Sentir medo de afundar ao caminhar por uma lagoa recoberta por plantas aquáticas nos fez respeitar o ambiente e entender seu equilíbrio “sutil”. Também nos fez respeitar os conhecimentos do guia, pois ele sabia por onde pisar. Seguimos seus passos. Sentir a pressão na cabeça, à medida em que altitude aumentava e o efeito do chá de sunfo diminuía, nos fez entender que estar na natureza não é necessariamente agradável, que há desafios a serem encarados; que há um respeito e quiçá uma superioridade da natureza frente a nós, ainda mais em ambientes extremos. Essas vivências trazem a noção de conexão sem abolir o sofrimento, a incerteza ou mesmo a imprevisibilidade que é estar no ambiente natural. Noções importantes que a cultura da alta performance [em tempos de modernidade líquida] nos convida a esquecer. A vivência estética nos faz interrogar o sentido da experiência e nos coloca frente a desafios pessoais e intersubjetivos no percurso da caminhada sem romantizar a natureza. Assim, a experiência também foi construída por contrastes e mal-estar. O solo lamacento no bosque repleto de água deu lugar a um solo pedregoso na parte íngreme da trilha, a queda d’água na cachoeira e o ambiente lêntico da lagoa; a textura fofa dos “frailejones” contrastava com os espinhos de bromélias (Clube de Hercules, Puya-clava herculis); os tons de verde mudavam ao longo da caminhada e afrontavam as pastagens e plantios das áreas externas à área de proteção. A água da cachoeira se destacava na paisagem e era possível observar do topo o percurso das águas na cachoeira, rio e lagoa. Tudo isso compôs minha experiência afetiva na caminhada.

A chegada ao ápice da trilha foi marcada pelo momento do brincar. No ápice havia um balanço gigante no qual os integrantes podiam se balançar orientados pelo guia e com equipamento de segurança. O brincar no balanço significou uma ruptura com atrativos naturais de trilhas, pois o balanço faz a chegada ao topo ser orientada/motivada por um elemento construído inserido no ambiente, mas que ao mesmo tempo proporciona a descontração e brincadeira. Vivenciamos expressões de espanto e surpresa ao estar no balanço indo e vindo em movimento pendular aproximando-nos de um penhasco e contemplando a vista de todo o percurso, vendo a trilha por outro ângulo, sentindo um vento frio no rosto e um “frio” na barriga por estar tão alto. Ter um momento de brincar, contemplar e agradecer agregou complexidade ao sentimento de realização da dura caminhada. 

As dimensões temporais do passado foram acessadas por meio das lembranças de outras experiências de caminhada nos relatos dos integrantes da equipe [caminhadas na Amazônia foram lembradas na comparação de níveis de dificuldades e performance, também a caminhada no páramo de Sumapaz na Colômbia foi lembrada pela similaridade de ecossistema – e é o maior do mundo!]. O futuro foi pensado em termos de valores constando-se as ameaças ao ambiente. Houve a indagação do porquê as árvores de Polylepis não estão se reproduzindo e como as mudanças climáticas podem afetar esses reservatórios de água, comprometendo a biodiversidade e a existência do próprio ecossistema. Ausências foram notadas sobre como as ancestralidades e as questões indígenas se fazem presentes na região, quais são as heranças e os conflitos atuais [ainda não sei o guia falou algo sobre isso]. 

Por fim, como não trazer a própria equipe que também interagiu entre si todo do tempo por meio fotografias, conhecimentos, solidariedade para carregar uma mochila, apoio e equilíbrio corporal no movimento da caminhada. Estivemos em um ambiente extremo, raro, vulnerável e único! Voltamos ao mesmo ponto de partida, mas não do mesmo modo como começamos a caminhada. Estivemos disponíveis para ser e para estar. Assim foi a nossa experiência particular na vivida na trilha em Polylepis.

Analisando as fotos

Tente reconhecer nas fotos abaixo os momentos mencionados ao longo da narrativa: 

Que legenda você daria para cada foto?

Alguns encaminhamentos de análise…

Escutar a natureza por meio da imersão durante uma caminhada da trilha é parte de um processo amplo de ser com a natureza a partir de bases não mercantis, a partir de significados subjetivos que são construídos na contemplação da natureza, na vivência desafiadora de estar em ambiente extremo, nas memórias de situações similares, nas trocas realizadas. A caminhada revela que o que foi subjetivamente valorizado na minha experiência também é carregado de apreensão, medo e mal-estar. Ainda, que tudo isso esteja ao lado do lúdico do brincar, da vista da beleza, do sentimento de superação, da recordação do momento de prazer permitindo um significado mais complexo do que é ser natureza e como percebê-la para além da lógica mercantil.

Os pontos que trago para reflexão se vinculam às experiências estéticas vividas no páramo visitado em Polylepis, mas podem ter aplicação prática mais ampla na elaboração de políticas de conservação, gestão e uso sustentável em outros ecossistemas vulneráveis, bem como na promoção de práticas de educação ambiental efetivas nessas áreas. A compreensão dos benefícios das trilhas educativas para a formação de subjetividades e a valorização dos direitos da natureza podem apontar para práticas locais na construção de identidades individuais e coletivas em interação na teia da vida. Quem sabe podemos aprofundar na temática ambiental essas metodologias autoetnográficas?

Referências bibliográficas 

Payne, P.; Rodrigues, C.; Carvalho, I.; Freire, L. M.; Aguayo, C.; Iared, V. G. Affectivity in Environmental Education Research. Pesquisa em Educação Ambiental, v. 13. Especial, p. 93-114, 2018.

Rodrigues, C. (2019). A ecomotricidade na apreensão da natureza: inter-ação como experiência lúdica e ecológica. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 51. Seção especial: Técnica e Ambiente, p. 8-23

Tavares, C. M. S.; Brandão, C. M. M.; Schmidt, E. B. Estética e educação ambiental no paradigma da complexidade. Pesquisa em Educação Ambiental, São Carlos, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 177-193, 2009.


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